Reencontrámos Lu Yanan no passado dia 25 de Fevereiro. Desta vez, na Casa Comum, no âmbito do concerto levado a cabo pela antiga solista da...

A Casa Comum abriu a janela para se ouvir de perto a paisagem sonora do extremo Oriente e da terra natal de Lu Yanan

Reencontrámos Lu Yanan no passado dia 25 de Fevereiro. Desta vez, na Casa Comum, no âmbito do concerto levado a cabo pela antiga solista da Orquestra Filarmónica da China, em Henan, promovido em parceria com o Instituto Confúcio da Universidade do Porto e a Casa Comum (Reitoria) da Universidade do Porto. O concerto de Lu Yanan abriu a janela da Casa Comum para se ouvir a paisagem sonora do extremo Oriente e da música tradicional da sua terra natal, a China. 

Muitas vezes pensa-se o mundo de acordo com a relação que temos com certa realidade. Mas há uma série de diferenças culturais cruciais para uma melhor compreensão do mundo.

Sobre o concerto de Lu Yanan
O concerto de Lu Yanan fez-se com intervalos mediados por um professor, cujo nome escapa-me, para descrever as diferenças da música tradicional chinesa da música ocidental, foi, por isso, sobretudo uma sessão de promoção à literacia musical do extremo oriente. 

Durante o concerto foram dadas explicações sobre as diferenças de como a música chinesa em relação à ocidental deve ser interpretada, destacar quais os instrumentos mais populares e que cuidados precisam, da mesma forma dar a sentir o espírito que habita em cada tema original ou versão tocados por Lu Yanan. A música chinesa em comparação com a europeia contém em si diferenças significativas, uma vez que a sua leitura deve desprender-se da concepção que se tem da música ocidental. Enquanto a música tradicional chinesa é dirigida a um público mais erudito, normalmente no ocidente é a clássica que tem esse enquadramento.
 

Formas e estéticas da música oriental e ocidental
Os tipos de música diferem no sistema tonal, escalas, instrumentos e desenvolvimento histórico. O sistema tonal da música chinesa usa um conjunto de números para representar as notas da escala, enquanto a ocidental suporta-se no solfejo orientado por sílabas para representar as notas da escala. Por outro lado, a música chinesa baseia-se na escala pentatónica, tal como o blues, cinco notas por oitava; enquanto o sistema europeu e ocidental sustentam-se na escala diatónica, sete notas por oitava. A música oriental também emprega glissandos, slides e vibratos para criar melodias expressivas. No que diz respeito à harmonia, a música clássica ocidental é regulada por harmonias complexas e uso de cordas com forma mais abstracta; ao passo que a música tradicional chinesa foca-se em linhas melódicas e harmonias simples. Quanto à estrutura, a música tradicional chinesa usa normalmente a cíclica com melodia e ritmos repetitivos, enquanto a música ocidental clássica orienta-se tipicamente por uma estrutura linear com secções e temas distintos. O estilo performativo da música tradicional chinesa enfatiza a improvisação e ornamentação, enquanto a ocidental segue a partitura. A música tradicional chinesa tem na sua roda de instrumentos o erhu, a pipá e o guzheng, cujos sons e técnicas diferem da europeia como o violino, o piano e o trompete. No geral, os dois estilos desenvolveram-se independentemente com um vocabulário único musical, técnica e estética, contudo, podem obter influência uma da outra - colaborações têm sido levadas a cabo entre músicos orientais e ocidentais para a criação de novos géneros, um desses exemplos pode ser ouvido a partir do lançamento da Antologia da música experimental da China ou a partir do artigo Black Metal Oriental. Apesar de não serem chineses, os Jambinai também podem ser incluídos nesse grupo.

A música tradicional chinesa tem uma longa história que remonta a milhares de anos, com as suas raízes na música tradicional e música de corte. É dirigida para uma elite, como a música clássica europeia que remonta a vários séculos e é marcada por vários estilos e períodos: a clássica, a barroca, romântica e música moderna. A música oriental é mais visual e tende a contar uma história.


Guzheng e Pipá
Lu Yanan dividiu o concerto em duas partes, sendo que a primeira foi tocada ao som do guzheng, considerado um dos mais antigos instrumentos chineses da familia das cítaras, instrumento muito popular no folclore chinês do povo étnico Han. Apresenta uma forma oblonga em que as cordas (entre 21 e 26), presas nas extremidades da caixa de ressonância, passam por um cavalete que determina a altura da nota. Também é conhecido como o piano oriental devido à amplitude de notas, o timbre, e a poderosa expressividade que possui. O tema "Vendendo Flores", um original de Lu Yanan, retrata a história de uma mulher que acorda de manhã para entregar flores numa determinada região. A cítara chinesa não converge nem pertence à mesma família indiana, mas emite a mesma beleza. Muitas vezes a forma como é tocada pode aproximar-se da cítara indiana e reverberar melodias próximas do raga.

Lu Yanan foi afinando a pipá ao longo da segunda parte, por ser um instrumento que desafina com muita facilidade. O primeiro tema "Cisne" emanou pleno encantamento e ilustra dois cisnes enamorados a brincar num lago, enquanto esvoaçam demonstrando contentamento. O segundo tema, um original de Lu Yanan, retrata uma noite passada em Portugal com saudades da sua terra natal. A música chinesa tenta captar sensações espirituais e que se atribuem à natureza. O traço de Lu Yanan é marcadamente calmo, ficando mais intenso e voltando à lentidão inicial.

Pode considerar-se a pipá como o rei dos instrumentos chineses e provém da família do alaúde. O som é mais agressivo em comparação com o guzheng e permite estabelecer paralelos com a expressão musical contemporânea ocidental. As composições dividem-se em dois grandes grupos, peças mais líricas de alusão a observações da natureza e estados de espírito, ou descritivas relacionadas a acontecimentos militares e eventos históricos. A forma de exposição da música remete para a composição ocidental em que a expressão transita para a exploração de sons fora das normas. Os trastes são elevados em relação ao cabo, permitindo menor grau na modelação das notas e mais limitação das notas. Outra peça tocada com ritmo solto e sem acordes regulares pela artista oriental retrata um evento na China no século III A.C. e narra a batalha entre dois exércitos. O rei do batalhão vencido suicida-se junto ao rio a pensar na mulher que deixa, esta alusão lembra parte de um poema de Agustina Bessa-Luís: 

Se eu fosse poeta,
enforcava-me num salgueiro à beira da água,
para ver-me refletido no rio
e sentir na morte companhia.

A escolha de Lu Yanan para esta peça simboliza a separação de um líder que entra numa roda viva de agressividade, cuja representação pode ser aplicada aos tempos actuais na Europa que enfrenta momentos de conflito armado de um líder que age com motivos expansionistas. Muitos dos temas tocados por Lu Yanan poderiam ser acompanhados por imagens projectadas de um dos filmes mais relevantes do cinema moderno chinês, Herói dirigido por Yimou Zhang, pois, além de uma beleza estética e poética singular, retrata tanto cenas de amor como de guerra.

Lu Yanan tem divulgado ao longo de quase duas décadas a tradição musical de uma das civilizações que persiste mais antiga, com mais de 5000 anos de existência. A China integra 56 grupos étnicos que se espalham por um território com mais de 9 milhões de km2, o tempo histórico e a dimensão geográfica deram espaço para o estreitamento ou alargamento da cultura rica em tradições, que contém ligeiras variações ou diferenças dramáticas. A Casa Comum tem vindo a dinamizar iniciativas culturais de entrada livre para trazer literacia cultural à sociedade. Lu Yanan está radicada em Portugal há quase 20 anos e continua a promover a cultura musical do seu país para alargar o horizonte musical das comunidades.



Texto: 
Priscilla Fontoura | Imagens e Vídeos com recurso a telemóvel: Emanuel R. Marques | Concerto: Casa Comum