O ruído contraria a harmonia tal como a violência se opõe à paz. Diz Jacques Attali que o ruído é, em si mesmo, violência: molesta. Fazer ruído é romper a comunicação, desconectar, matar. Por outra parte, a música é o simulacro de canalização do ruído, imagem de sacrifício, sublimação, exacerbação do imaginário, ao mesmo tempo que criadora de ordem social e de integração política1.
Todo o poder ou ideologia precisa de um músico para fazer esquecer a violência geral; de fazer acreditar na harmonia do mundo pela legitimação do poder; e de fazer calar a dissidência produzindo uma música ensurdecedora e eclética. O poder utiliza a música como bode expiatório ou rito sacrificial quando nos quer esquecidos; como encenação ilusória sempre que necessite da nossa credulidade; e como repetição em série, uniformizadora, quando precise de nos emudecer.
A música sempre foi um instrumento nas mãos do poder. Carlos Magno impôs o canto gregoriano para controlar o pensamento e criar a unidade política e cultural em todo o seu império. A ópera, a música sinfónica, o jazz, o pop ou o rock reproduzem a estrutura das sociedades nas quais se manifestaram e também mudam com elas. Mas o músico também pode ser perigoso quando tem a possibilidade de subverter a normalidade e nos faz ouvir aquilo que acabará por se tornar visível. Essa era a advertência de Platão, pois “nunca se abalam os géneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade”2. E quando o poder desleixa a proteção e financiamento dos seus músicos, eclodem os sons dos diferentes poderes em conflito e até os ruídos de revolução.
Em 1830, quando tinha apenas dezassete anos, Richard Wagner ficou revoltado pela invasão russa da Polónia, e aí começou o seu in amado posicionamento revolucionário. Em 1848, ano do Manifesto comunista, Wagner frequenta o anarquista Bakunin e, pouco antes da revolução de maio de 1849, no dia 8 de abril publica um artigo radical, no Volksbläter, pedindo a destruição da ordem existente; mas a revolução foi duramente reprimida e, milagrosamente, consegue fugir ao fuzilamento exilando-se na Suíça. Wagner nunca incluiu ‘Die Revolution’ na edição dos artigos e poemas mas foi o germe do libreto da Tetralogia de O Anel dos Nibelungos.
A viúva de Wagner, Cósima, e o seu lho Siegfried, dirigiram o Festival de Bayreuth até 1930, passando a direção, nesse ano, para Winifred, viúva de Sigfried, que era muito amiga de Adolf Hitler, começando aí a manipulação da mensagem wagneriana. O gosto musical de Hitler não ia além de operetas e de insípidas musiquetas, mas o aparato de propaganda nazi soube capitalizar os convites do festival. No final da guerra, Winifred foi condenada à prisão, com pena suspensa, e afastada da direção.
O triste paradoxo é que após mais uma invasão russa, e um século da perversa manipulação nazi, ainda haja quem acredite que Wagner inspirou as atrocidades de Hitler, ou que um grupo paramilitar invoque o seu nome para semear a morte na Ucrânia. Nenhum deles percebeu alguma coisa do significado profundo das óperas wagnerianas, e como a invocação errada os leva a uma desgraça imprevista e funesta, como aconteceu a Hitler. Talvez esta reflexão de Edward Said nos ajude a entender: “Em certo sentido, todas as artes são silenciosas... a música, que depende do seu som, e é som, é a mais silenciosa, a mais inacessível ao significado mimético que, por exemplo, podemos obter de um poema, uma novela ou um filme.”3 Interiorizar esse silêncio é um ritual reconciliador com a ordem social, mas o silêncio que aqueles iluminados impõem à humanidade tem mais a ver com a paz dos cemitérios, em sentido literal. Quando a música substitui o ruído natural de fundo, transforma-se numa violenta imposição do silêncio pela música, num ruído para fazer calar a massa ou reorganizá-la ideologicamente por meio da repetição. Mas a repetição só transmite a insignificância, a incomunicação e utiliza o arcaico sistema tonal para não surpreender o público e assim conseguir que a massa consuma as musiquetas do ruído de uniformização universal. Há uma outra música, radicalmente oposta, minoritária e sem mercado, que sub- verte os códigos culturais dominantes, e que pode fazer-nos ouvir aquilo que acabará por tornar-se visível. Attali conclui que “a música é como a multidão, tanto ameaçadora como uma fonte necessária de legitimidade, um risco que todo o poder deve correr ao tentar canalizá-la”4.
O imperador romano Marco Aurélio, no livro segundo das suas Meditações, afirma: “Eu já vi a beleza do bem e o horror do mal, e percebi que a natureza de quem pratica esse mal é semelhante à minha”5. A música é uma negociação contínua das partes em conflito. A composição é um questionamento perpétuo da estabilidade, ou seja, das diferenças. Lederach dá por certo que “a criatividade vai além do que existe, rumo a algo novo e inesperado”6.
Autor do texto: Rudesindo Soutelo (Compositor e Mestre em Educação Artística)
1 Attali, J.: Ruídos. Ensaio sobre la economia política de la música. Valencia: Ruedo Ibérico, 1977, p. 53.
2 Platão: A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 169 [424 c].3
3 Said, E.: Música al limite. Barcelona: Random House Mondadori, 2011, p. 348.
4 Attali, J.: Op. cit. p. 29.
5 Aurélio, M.: Meditações. Lisboa: Cultura editora, 2019, p. 19.
6 Lederach, J.P.: The Moral Imagination in European Judaism. Volume 40, Issue 2 (2007) (berghahnjournals.com). Aces- so em: 11 abr. 2023.