Se eu tentasse descrever   Grace   (1994), diria que quase todas as canções — ou ao menos a sua sombra — levam a Rebecca Moore . E alguns te...

Se eu tentasse descrever Grace (1994), diria que quase todas as canções — ou ao menos a sua sombra — levam a Rebecca Moore. E alguns temas de Sketches for My Sweetheart the Drunk (1998) também. Entre brincadeiras com jornalistas, respostas abstractas, metáforas e experiências menos ortodoxas, o papel de Rebecca na vida de Jeff Buckley é inegável e exclusivo. Não fosse a sua presença e memória, o peixe solitário não teria sido tão profundamente inspirado na sua jornada artística, que se estendeu até ao fim.

Rebecca Moore a agradecer Jeff Buckley (Scratchy - como o chamava) no seu disco Home Wreckordings 1997-1999.

Com a estreia iminente do documentário It’s Never Over, Jeff Buckley (2025), marcada para 8 de Agosto, a memória deste músico singular ressurge. Com apenas um álbum, Jeffrey Scott (Scotty) moldou gerações, especialmente no rock alternativo. Revisito-o com reverência — é uma das minhas referências mais preciosas, demasiado especial para ser banalizado. Cada mergulho no seu universo emociona-me e prende-me, tornando difícil o regresso.

Há, contudo, outras almas que habitam esta órbita emocional: Nick Drake e Elliott Smith. Os três exploravam a solidão, o amor perdido e a fragilidade humana com letras poéticas e sombrias. Morreram jovens, em tragédias que amplificaram os seus mitos. Esta semelhança criou um destino melancólico que os liga no imaginário colectivo. Todos priorizavam a intimidade emocional, com produções que convidavam o ouvinte a imergir na mente ou no rio deste peixe — quase como confidências sussurradas. E há ainda um detalhe curioso: tanto quanto sei, as mães de Jeff e de Drake também tocavam instrumentos.

CD's de Jeff Buckley - Nick Drake, Pink Moon, 1972

Rebecca Moore: A inspiração de Corpo e Alma
Jeff chamava-lhe "Borboleta"; Rebecca via-o como um "Peixe Solitário" — duas criaturas de um azul rodopiante que se cruzaram num rio de música e melancolia. Rebecca não foi apenas uma iluminação etérea: foi uma presença concreta, a primeira namorada "a sério" de Jeff, e a razão pela qual Jeff se mudou para Nova Iorque.

Fala-se em musas, um termo que melhor se aplica ao imaginário platónico de um espectro e força não representável que inspira a dimensão criativa. Neste contexto, falamos de realidade e história, de frustração, do que não resultou, e, sobretudo, da conexão emocional que perdurou até ao fim da vida de Jeff Buckley — de memória, essencialmente. Rebecca estava intrinsecamente unida a Jeff na mesma galáxia.

Jeff e Rebecca Moore no Yaffa Cafe, 2 de Janeiro, 1995, fotografia de Bobby Grossman
Rebecca Moore prende a atenção porque é sabido que é figura central em Grace, especialmente nos temas Lover, You Should’ve Come Over e na canção que a indústria considerava o hit do álbum, mas que Jeff não quis incluir por ser demasiado literal e destoar do sentido geral: Forget Her. A música foi gravada durante as sessões de Grace, produzido pelo incrível Andy Wallace, e o único álbum de estúdio completo de Buckley, mas permaneceu oficialmente inédita até ser lançada como a faixa de abertura do disco bónus de Grace: Legacy Edition, uma reedição remasterizada do álbum lançada em 2004. A verdade é que, na minha opinião, muitos outros temas de Grace apontam para Rebecca. Questiono também se o tema I Know We Could Be So Happy Baby If We Wanted To Be é sobre Rebecca. A frase "hang your ruined letters out to dry" (pendura as tuas cartas arruinadas para secar) aparentemente referia-se a um maço de cartas de Rebecca Moore que tinha sido encharcado por um cano partido no apartamento de Jeff em Nova Iorque, conforme relatado no livro Dream Brother, de David Browne. 

Rebecca Moore e Jeff Buckley com Gary Lucas

Jeff tinha uma forma muito íntima e vulnerável de expressar o amor, a perda e o anseio nas suas letras. A ideia de um amor com grande potencial que, por alguma razão, não se concretizou plenamente ou se desfez, é uma melodia recorrente nas suas canções, e encaixa-se perfeitamente na narrativa da sua ligação a Rebecca. Muitas das suas canções exploram essa saudade de um passado idealizado e a dor da oportunidade perdida, o que se alinha com a complexidade e a profundidade da sua relação com Rebecca, que foi uma companheira criativa e emocional significativa, mas que não resultou num "felizes para sempre". Esse sentimento de "quase" ou "se tivéssemos" é uma marca registada da melancolia poética de Jeff. Lilac Wine, originalmente escrita e composta por James Shelton em 1950, para o musical Dance Me a Song, interpretada por vários artistas notáveis, sendo as versões mais famosas as de Nina Simone e, mais tarde, a de Jeff Buckley, presente no seu icónico álbum Grace (1994), demonstra como Lilac Wine quanto Mojo Pin, a substância (o vinho de lilás ou o "mojo pin", que pode ser interpretado como heroína ou outra droga) surge como um substituto ou um meio de evasão perante a dor da ausência ou a falta de uma conexão vital.

Por sua vez, Songs To No One é uma colectânea que captura o nascimento artístico de Jeff Buckley, entre 1991 e 1992, antes do álbum Grace. São 11 faixas, com 7 inéditas, gravadas com o guitarrista Gary Lucas, ao vivo e em estúdio em Nova Iorque. Inclui as primeiras versões conhecidas de Grace e Mojo Pin, canções que mais tarde apareceriam no disco Grace (1994). Muitos consideram que Mojo Pin pode ser sobre heroína; pode ser, mas será que não é, igualmente, sobre Rebecca?

    Still feel your hair, black ribbons of coal
    Touch my skin to keep me whole
    Oh, if only you'd come back to me
    If you laid at my side
    Wouldn't need no mojo pin
    To keep me satisfied

    Don't want to weep for you
    Don't want to know
    I'm blind and tortured, the white horses flow
    The memories fire
    The rhythms fall slow
    Black beauty, I love you so

Baudelaire escreveu sobre o amor como algo lindo e venenoso ao mesmo tempo, capaz de elevar e destruir. Jeff Buckley, por sua vez, vivia o amor com uma intensidade espiritual quase insuportável, e isso transbordava nas suas canções. A história com Rebecca Moore é um exemplo clássico — uma inspiração absoluta, mas também uma ausência, uma dor. Tanto Baudelaire quanto Buckley usavam a arte para substituir ou exorcizar experiências amorosas dolorosas, transformando-as em beleza — mas isso nunca os livrou da dor. Jeff dizia: "A música dá-me o que a vida nunca me deu. Mas também tira o que eu não sei viver sem." Essa ambiguidade — amar o que te destrói — é puramente baudelairiana.

Diários de Jeff Buckley

A artista experimental e violinista Rebecca tinha nessa fase cabelo escuro (hoje, alvo), e é interessante notar que um dos seus diários sonoros, Home Wreckordings (1997-1999), é caracterizado por um cavalo, ano que marca a morte de Jeff, 29 de Maio de 1997, perto do aniversário de Rebecca, 21 de Maio. A relação entre Jeff Buckley e Rebecca Moore ainda não tinha terminado quando Jeff escreveu Mojo Pin — na verdade, estavam juntos, e a intensidade da relação foi justamente o combustível emocional para a canção. Quando Mojo Pin foi escrita (entre o fim de 1991 e o início de 1992), Rebecca era companheira criativa e emocional de Jeff. É por causa dela que Jeff se muda definitivamente para Nova Iorque, e vivem no Lower East Side. É Rebecca quem lhe apresenta o universo da downtown e também quem o apresenta a Michael Tighe, que mais tarde se tornaria guitarrista e coautor de Jeff. A letra da música transmite o medo de perdê-la, mais do que a dor de uma perda já consumada. 

A letra de Fantasy, escrita por Rebecca Moore, aponta também para Jeff:

    Every man has a place, in his heart there's a space,
    And the world can't erase his fantasies
    Take a ride in the sky, on our ship fantasii
    All your dreams will come true, right away
    And we will live together, until the twelfth of never
    Our voices will ring forever, as one

Rebecca Moore, disco Home Wreckordings, 1997-1999

O Coração de Jeff e o Destino de Rebecca
Sem querer diminuir a importância de outras paixões e amores, como Joan Wasser (Joan as a Police Woman), também violinista, a quem Jeff pediu em casamento pouco tempo antes de morrer, há um vídeo de Jeff a andar pelas ruas de Paris, cuja introdução se dá quando diz que todas as suas melhores amigas foram mulheres. Durante a sua primeira visita a França, filmado em 22 de Setembro de 1994, Jeff, ao chegar ao Moulin Rouge, declara que a próxima visita a Paris será com Rebecca Moore, e que Paris é um tédio sem ela – surpresa das surpresas, Jeff tinha uma relação com Joan nessa altura. Paris era a cidade com a qual Jeff tinha uma relação muito especial, com uma comunidade de fãs admirável. Ainda que, como os outros músicos já nomeados, o seu talento tenha sido reconhecido postumamente, Jeff é um dos músicos que celebrou um contrato muito flexível e bem abonado para a época com a Sony. 

O peixe solitário via Paris como uma cidade que compreendia a sua música e onde se sentia profundamente acolhido. Valorizava a cultura local, emocionava-se com o público e sentia-se mental e emocionalmente energizado pelos concertos realizados ali. O admirador de Edith Piaf amava a Ville Lumière, e essa admiração certamente contribuiu para a sua sintonia com a cultura musical francesa — especialmente em apresentações onde incluiu medleys de Piaf no repertório. Jeff considerava tocar no Olympia de Paris uma honra equivalente à de um cantor de ópera no Metropolitan Opera de Nova Iorque. Para o músico, representava um reconhecimento artístico muito significativo. Após um concerto no Bataclan, relatos contam que a noite deixou tanto o público quanto Buckley emocionalmente marcados — uma experiência descrita como “mais forte, mais vulnerável, sozinho e ao mesmo tempo em comunhão de pensamento”.

Jeff Buckley

Consta que Jeff gostava muito de fazer chamadas telefónicas para amigos, colegas e namoradas. Uma vez, como não sabia que as chamadas internacionais eram muito mais caras, a editora teve de pagar uma conta exorbitante. Jeff ligou para algumas pessoas antes do "acidente" no rio Wolf, incluindo Rebecca, a fotógrafa Merri Cyr e o seu manager Dave Lory. Dave conta a história de que, quando esteve hospitalizado por causa de um pneumotórax, Jeff estava em LA para uma digressão a solo e foi visitá-lo. Dave disse que Jeff aparecia como um fantasma, e Dave perguntou o que se passava, ao que Jeff respondeu: "tu também me vais deixar?". Dave disse: "o que queres dizer, deixar-te?", e Jeff respondeu: "porque todos me deixam". Evan Banks, a sua agente de concertos, refere que Jeff parecia carregar consigo grande parte do tempo um lado tempestivo, problemático e insatisfeito, e Dave destaca a sua vulnerabilidade.

    And the rain is falling and I believe
    My time has come
    It reminds me of the pain
    I might leave
    Leave behind, Grace

Jeff Buckley ao telefone

Existem fãs que culpam a Sony pela morte de Jeff, por negligência sobre o seu estado de stress, exaustão e depressão pós-Grace, motivados também por várias digressões, pelas condições como Jeff estava a viver em Memphis aquando da gravação do próximo álbum, que muitos consideram um fracasso ainda que não produzido. Memphis o berço do blues, a terra que Elvis colocou no mapa e músico que Jeff tanto admirava, de onde Martin Luther King foi assassinado. Jeff queria sair do foco de atenção. Não se sabe se já estaria num estado de psicose acentuada, ou se apenas perdido. Candidatou-se a cuidador de borboletas no Zoo de Memphis, e, ironia, hoje, Rebecca tem uma quinta para cuidar de animais maltratados e não está tão envolvida nas artes como anteriormente. Mais irónico é que, na pequena sala de trabalho, quando viveram juntos em Nova Iorque, pintaram um poema no vidro da janela com tinta azul de vitral. Aludindo aos nomes carinhosos que tinham um para o outro — Jeff era Scratchy e Moore era Butterfly.

    The tip of her wing grazed the water lightly
    Where only moments before she had seen the shadow move.
    She heard the rumors about a lone scratchy fishy.
    Possibly the only one of its kind.
    Roaming the dark water his eyes to the sky.
    With each careful swoop she moved close to the swirling, beautiful blue.
    livro Dream Brother, data da primeira publicação 2000

O produtor que o estava a gravar, sob pressão da Sony, mostrou a demo e Jeff, após 3 ou 4 horas de atraso, apareceu nos estúdios e deparou-se com o produtor a mostrar o tema que Jeff tinha pedido para não mostrar. Jeff estava com um bloqueio criativo. Apesar do talento e do carisma, Jeff era um espírito solitário, introspectivo, muitas vezes dividido entre o desejo de conexão e a necessidade de se esconder. A última mensagem de Jeff para Rebecca ao telefone foi: "Pensa em mim e sorri. Vou trabalhar duro, meu bem. Vejo-te do outro lado."

I'm waiting for the ghost of your smile... (Mojo Pin)

Aqui, o sorriso é fantasma — algo que existia, mas foi perdido. Mostra o quanto ele associava o sorriso da pessoa amada à presença emocional dela.

Rebecca Moore
Jeff e Rebecca

Rebecca Moore foi ponte para contactos de Jeff para gravar com banda, mais uma vez, foi com Rebecca que viveu em Nova Iorque e quem esteve com ele quando a sua vida artística estava a transitar do anonimato para os grandes contratos e exposição. Jeff foi convidado pela produtora do centro cultural da igreja para participar do espectáculo Greetings From Tim Buckley, um tributo ao pai que mal conhecera. Entre os músicos envolvidos estava Gary Lucas, guitarrista da cena experimental de Nova Iorque (ex-Captain Beefheart), que mais tarde formaria os Gods and Monsters. Rebecca Moore, actriz, artista e compositora ligada ao circuito alternativo da downtown nova-iorquina, também participava da organização ou fazia parte do ambiente da performance. Jeff conheceu-a no âmbito do concerto em homenagem ao pai que o abandonou ainda bebé, Tim Buckley, e talvez esse seja o vínculo que uniu Jeff a Joan Wasser, sendo Joan filha adoptiva. Jeff nunca conheceu Tim a fundo e nem queria que a sua carreira fosse legitimada por ser filho dele; isso criou um vazio emocional profundo, que explorou ao revisitar a sua herança musical.

Sabe-se que Jeff gostava de mulheres excêntricas, criativas, com personalidade. E Rebecca era criativa, dedicada às formas de expressão artísticas. Speakerphone é um tema tão imersivo que custa ouvir se o remetermos à sua relação com Jeff. Pensa-se, de facto, ser sobre isso. Leva-nos ao fundo de um rio sem querermos voltar à superfície. A borboleta tentou a vida artística de Nova Iorque, mas a própria cidade também foi refém de uma crise cultural.


Rebecca Moore, concerto

https://lanternpm.org/book/vegan-voices/


Entre o aparecimento em meios underground e o anonimato, hoje Rebecca, casada, é fundadora do Institute for Animal Happiness (Instituto para a Felicidade dos Animais), um abrigo de galinhas que também promove a consciencialização sobre o veganismo e oferece oportunidades educativas no Vale do Hudson, no estado de Nova Iorque. Entre as suas iniciativas estão o Hudson Valley VegFest e o Kingston Animalia, uma “revolução artística vegana”. O título do seu ensaio na colectânea Vegan Voices é: “Evoluções e Revoluções no Cuidar. Rebecca promove a importância do veganismo, sobre a clareza de espírito, corpo e mente, sobre o valor dos animais, e critica sobre como a sociedade é fundada na exploração de outros. Defende como devemos ser conscientes das nossas escolhas e como as mesmas não devem implicar sofrimento nos outros seres vivos. Rebecca destaca a justiça social, o cuidado de pessoas e animais, o activismo e a sua participação no mundo para a ruptura de vários tipos de opressão. Não admira como esta não teria sido a inspiração de Jeff.

Jeff era um loner, como referiu o manager Dave Lory, que também se considerava um e assume que, apesar das diferenças, foi esse modo de ser que os uniu, uma vez que ambos tiveram uma infância pontuada por mudanças constantes de cidade, de escolas, e relações de amizade muito efémeras.


Jeff Buckley com a sua mãe Mary Guibert


Jeff Buckley projectava nas mulheres o sagrado, o trágico e o sensual. Para o peixe solitário, eram espelhos e forças divinas — as suas canções são diários emocionais que guardam pedaços delas, mesmo quando os nomes não aparecem. O facto de ter sido criado por uma mãe forte e presente, na ausência total do pai, moldou Jeff Buckley de forma profunda. O padrasto de Jeff Buckley foi uma figura crucial na sua educação musical — não como uma presença emocional dominante, como a sua mãe, mas como um portal para a vastidão sonora que ele depois exploraria com tanta profundidade.

Jeff transformava a dor em beleza. A sua ligação a Rebecca foi intensa — um "quase" que definiu a sua melancolia poética.

Recortes de letras de canções de Jeff Buckley

E assim como o blues nasceu no lamento subtil da Beale Street, onde cada acorde parecia um sussurro das águas escuras do Mississippi, Memphis tornou-se o cenário de encontros improváveis — entre o sagrado e o profano, entre o silêncio e o grito da alma.

Foi ali que Jeff Buckley, como aquele peixe raro do poema, mergulhou nas águas profundas, em busca de algo além da superfície. Mergulhava com as suas botas gastas no rio Wolf, entoando Whole Lotta Love, da banda que embalou a sua infância nómade — Led Zeppelin. Como um bluesman surgido fora de tempo, carregava nos olhos uma constante procura pelo céu, e na sua música — feita de ecos, pausas e vertigens — transparecia esse desejo de algo inalcançável, etéreo, quase silêncio.

E Rebecca, talvez uma borboleta ou apenas uma lembrança, desce com asas finas e ouvidos atentos. Ouve rumores de um som — um lamento, um eco, um peixe com a alma feita de água e voz. E ao deslizar sobre o azul turvo do rio, sente que algo já passou, mas que ainda pulsa nas correntes invisíveis da cidade.

Memphis, então, é esse ponto de contacto: onde os fantasmas do blues, as canções perdidas e os amores que pairam no ar ainda riscam a superfície como o bater de uma asa de uma borboleta, cuja asa roçou levemente a água. E mesmo quando tudo se cala, a água guarda segredos. E canta.

Rio Wolf, página MojoPin.org
Homenagem a Jeff Buckley, página MojoPin.org
Colagem multimédia, Sketches for My Sweetheart the Drunk, página MojoPin.org 
Jeff Buckley, página MojoPin.org


Estou ansiosa para ver o documentário realizado por Amy Berg. Mas há coisas que devem ser guardadas para o momento certo. Toda esta tese apoia-se apenas nestes breves recortes que seleccionei. Se faz algum sentido, cabe a cada pessoa decidir. Pode ser apenas parte de uma ficção construída em torno da imagem mítica de Jeff Buckley. 

Texto: Priscilla Fontoura
Fontes:

Género: Alternativo, Rock Noise, Rock Progressivo Bandas: Pili Coït & Les Exocrines + Yowie Disco: Split Lançamento: 16 de maio de 2025 ...

Género: Alternativo, Rock Noise, Rock Progressivo
Bandas: Pili Coït & Les Exocrines + Yowie
Disco: Split
Lançamento: 16 de maio de 2025
Editora: DUR&DOUX

Artwork by Arnulf Roedler

Há quem diga que não passa um dia sem ouvir música. Há quem diga que nem sequer gosta de música. E depois, há aquelas pessoas que precisam de pausas—de desligar de tudo—para, mais tarde, voltar a ouvir. Como quem volta a saborear um prato que já não comia há muito tempo, e por isso, torna o momento ainda mais especial do que algo que consumimos todos os dias, quase por rotina.

É precisamente esse espírito que trazemos para esta review: o casamento musical entre Pili Coït e Yowie, com este Split.

Já houve quem dissesse que, neste split, não há nada de divisivo. E o que temos nós a dizer sobre isso?

Simples: ouçam-no. Deixem-se levar, deixem-se surpreender. Isto não é sobre lados, é sobre dois universos que se cruzam, que colidem e que, no fim, deixam marca.

Após o tempo sabático, de forma pontual, mas gradualmente e sem pressa, vamos começar a falar sobre discos e outras coisas que se destacaram...

Após o tempo sabático, de forma pontual, mas gradualmente e sem pressa, vamos começar a falar sobre discos e outras coisas que se destacaram durante esse período de pausa, quando der, quando nos apetecer e quando fizer sentido.

Género: Punk, Hardcore
Banda: Turnstile
Disco: Glow On
Lançamento: 27 de agosto de 2021
Editora: Roadrunner Records

Capa do álbum foi criada por Alexis Jamet, com direcção de arte de Dewey Saunders.

A mudança em Glow On (2021) é o resultado de uma evolução natural que Turnstile vinha a apontar desde os discos anteriores, mas que aqui se concretiza plenamente. A transformação transparece a vontade de expandir os limites do hardcore punk ao incorporar novos estilos, texturas e emoções à sonoridade da banda.

Enquanto discos como Nonstop Feeling (2015) e Time & Space (2018) já apontavam para uma fusão de hardcore com elementos de funk, groove e melodia, Glow On dá um passo adiante. Um brilho mais ousado e experimental. O quinteto de Baltimore explora influências que vão desde ritmos caribenhos e dream pop até elementos de música electrónica, mas sempre mantém a energia solta que define o núcleo do hardcore.

A mudança reflecte também um amadurecimento criativo. A banda americana parece confortável em romper barreiras e ignorar as expectativas de "pureza" dentro do género punk. Brendan Yates e os outros membros canalizaram uma abordagem colaborativa para a composição, o que resultou num som mais amplo e inclusivo.

Disco produzido por Mike Elizondo (conhecido por trabalhar com artistas de hip-hop, pop e rock como Dr. Dre e Fiona Apple), Glown On apresenta uma produção polida e inovadora que dá espaço para as ideias da banda respirarem. Os sintetizadores etéreos, os refrões quase pop, e a inclusão de sons inesperados (como os ritmos hipnóticos de "Alien Love Call" com Blood Orange) mostram que Turnstile não tem medo de explorar territórios desconhecidos.

A mudança não é apenas técnica, mas também emocional. O trabalho mais recente é um álbum que abraça a introspecção, a melancolia e a celebração de uma forma que vai além da raiva típica do hardcore. A banda ainda mantém a energia explosiva e a intensidade que os fãs gostam, mas com uma profundidade emocional e uma vontade de arriscar que elevam o álbum a um novo patamar.

O som inicial do Turnstile é um murro no peito e um convite ao caos, enraizado no hardcore punk de coração puro. Com a energia crua de Youth of Today, a alma rebelde de Bad Brains, e a ferocidade de Trapped Under Ice — banda da qual Yates foi membro — os primeiros trabalhos como Pressure to Succeed (2011) e Step 2 Rhythm (2013) apresentam faixas curtas, agressivas, e rápidas, que encapsulam o espírito do hardcore tradicional. 

Certo é que desde o início, a banda brilhava com riffs pesados e grooves irresistíveis, combinados com uma atitude desafiadora que se aventurava além do óbvio. A fórmula misturava melodia no caos, swing na agressividade, e uma produção mais refinada do que o género normalmente permitiria. Turnstile não apenas seguia o manual do hardcore — estava já a reescrevê-lo. 

Quando chegamos a Glow On, a máquina está bem afinada. Pedais oleados, travões ajustados e músculos prontos para acompanhar a energia eléctrica. Este disco, composto por 15 faixas de pura vibração, não é apenas para ouvir; é para sentir nas veias. Aqui, a idade desaparece — seja na adolescência ou na velhice, o pulso acelera, o sangue corre, e a vida ganha um novo ritmo ao som da banda americana; se for com um skate nos pés, ainda melhor.

Esses jovens músicos são alquimistas sonoros, capazes de absorver influências de Rage Against the Machine, Refused, Fidlar, Beastie Boys, The Bronx, Heisa, Turbonegro a Razorbumps, moldam-as numa fusão irresistível. Preso num dia cinzento, sem forças para sair da cama? Dá play neste disco. Em minutos, estarás a respirar ar fresco, arrancado da apatia e lançado aos braços de uma tempestade sonora.

E no centro desse furacão está Brendan Yates, que trocou as baquetas pela voz, não para afastar-se do ritmo, mas para criar algo ainda mais colérico. As letras que escreve ganham vida no palco, e transformam-se numa tempestade de energia crua e magnética. 

Não há muito mais a dizer, excepto um aviso: se estás disposto a ceder ao apelo do capitalismo para viver este momento, vai ao Primavera Sound e deixa-te perder na multidão. Mas se és fiel às raízes do punk, aguarda pelo calor de um concerto fechado, onde o verdadeiro espírito do hardcore ganha vida — com mosh pits, invasões de palco e caos glorioso. Porque Turnstile é isso: a banda-sonora de um mundo em rebelião organizada. 

Em resumo, a mudança de Turnstile em Glow On não é uma ruptura, mas uma evolução — um reflexo da coragem criativa de uma banda que se recusa a ser limitada pelos rótulos.

Em que tema estás? Eu cá fiquei retida na Mystery... Agora, calça as tuas Vans e deixa que o espírito te conduza, sem pressa e sem rumo certo. E não te esqueças de apertar os cordões. 



Texto: Priscilla Fontoura
* Este texto não foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico

“Desire for an idea is like bait. When you're fishing, you have to have patience. You bait your hook, and then you wait.The desire is th...

“Desire for an idea is like bait. When you're fishing, you have to have patience. You bait your hook, and then you wait.The desire is the bait that pulls those fish in—those ideas. The beautiful thing is that when you catch one fish that you love, even if it's a little fish—a fragment of an idea—that fish will draw in other fish, and they'll hook onto it. Then you're on your way. Soon there are more and more and more fragments, and the whole thing emerges. But it starts with desire.”

― David Lynch, Catching the Big Fish: Meditation, Consciousness and Creativity 


 

 

Imagem: Carlos Lowenstein Não é verdade que a música que se criava há duas, três ou quatro décadas era melhor. Talvez fosse mais fácil aceit...

Imagem: Carlos Lowenstein

Não é verdade que a música que se criava há duas, três ou quatro décadas era melhor. Talvez fosse mais fácil aceitar as preferências das rádios e de outros canais de difusão que colocavam bandas no centro dos holofotes em detrimento de outras. E talvez, caras associadas à divulgação de música levavam melómanos a consumi-la por confiarem nas sugestões desses especialistas. A máquina era pensada de outra forma e nem sempre chegava aos ouvintes com o imediatismo de agora. Hoje, sabemos que a partilha online é imediata, mas também mais efémera. Todos são produtores, promotores e criadores, as funções mesclam-se na era da cultura democratizável. 

Talvez seja também mais difícil ouvir algo que nos faça vibrar por carecer de peculiaridade. Mas a sede de outras sonoridades é saciada quando discos conseguem modelar as expressões faciais. Os americanos Lifeguard são um desses casos. A banda que podia fazer parte do clã Stranger Things, inspira-se no garage, pós-punk, indie rock desconstruído dos anos 90, enfatizado pelos Sonic Youth, para criar música que suscita interesse. De um lado Kai Slater canta melodias e toca a guitarra retro conturbada, do outro Asher Case marca o ritmo com palavras e baixo e ao centro Isaac Lowenstein marca o tempo com batidas intensas. A energia vai alimentando a evolução de uma banda que ainda é recente, mas com todos os nutrientes necessários para lançar discos que necessitamos de juntar à nossa playlist.

O baixo propulsivo de Case e a bateria intensa de Lowenstein alimenta a euforia colectiva, própria de jovens idealistas que vêem nos palcos, estúdios e pessoas à sua volta a sua libertação. Como alguém disse, é como se Sonic Youth e Drive in dessem à luz um filho. Ou uma filha. E Alarm marca esse momento. Esta estranha relação intergeracional que liga gerações diferentes, as mais novas, que muito ou pouco sabem sobre a vida, depende da idade com que se depara com tragédias anti-natura, aos mais velhos, com experiência sobrelotada com memórias, só é possível pela magia que a música tem. Uma coisa é reveladora, as influências são essenciais para o género de música que os Lifeguard fazem. O trio não pretende ser um arquivo musical que traz à superfície a imitação de guitarras underground de décadas passadas, pelo contrário, é o produto de uma comunidade que traz uma nova roupagem alicerçada ao revivalismo do rock de 90.

Dive

No álbum de estreia Dive, os Lifeguard apresentam linhas de baixo que poderiam animar até temas pós-punk mais sombrios, uma bateria apaixonada que aumenta a tensão até ao ponto de ebulição e guitarras ferozes tão saturadas de distorção que se espalham pelas salas. Unfold é sem dúvida o tema que mais chama a atenção pela brincadeira rítmica que o trio cria e Fishnet volta a Sonic Youth como referência maior, mesmo que não seja consciente. As referências de Lifeguard vão de Tortoise, Fugazi a Unwound - bandas que nasceram sem nenhum membro de Lifeguard existir ainda. Contudo, o adn poderia justificar a tendência para o tipo de sonoridade, uma vez que o baixista e vocalista Asher Case é filho de Brian Case (Facs) que comentou com Munaf Rayani de Explosions in the Sky que a incursão do seu filho na música foi por vontade própria e influência de amigos. Verdade seja dita, Dive transparece a exploração de três miúdos com curiosidade para desbravar novos caminhos e cuja pegada é mais transformadora e ousada ao rock do género feito em décadas passadas.

Crowd Can Talk


O mais recente trabalho resulta de um esforço colectivo. 17-18 Lovesong fica no ouvido por tempo indeterminado, aparentemente inspirado por relações desfeitas e por uma profunda autorreflexão. O tema esboça um misto de sentimentos sincronizados por um pós-punk que pede um passeio de bicicleta acelerado. A compilação de dois EPs, Crowd Can Talk, lançado ano passado via Matador, originalmente editado pela Born Yesterday, e Dressed in Trenches, uma colecção de cinco temas, lançado a 7 de Julho, gravado no estúdio Electrical em Chicago, pelo engenheiro de som Mike Lust, é a nossa recomendação para escuta e salvação para um metro apinhado de gente. Lifeguard mostra que a cena juvenil de Chicago encontra-se de boa saúde.

Texto: Priscilla Fontoura

Género: alternativo, experimental, avant-garde, rock Autores:  Ultra Zook Disco:  Auvergnication Lançamento:  5 de Maio, 2023 Editoras:  Du...

Género: alternativo, experimental, avant-garde, rock
Autores: Ultra Zook
Disco: Auvergnication
Lançamento: 5 de Maio, 2023
Editoras: Dur et Doux, Coolax, Araki Records, L'Etourneur, Not a Pub e Gnougn, Ignominie


Espera-se, de alguns "mensageiros" que nos enviam emails, novidades interessantes. Os Dur et Doux fazem parte da faixa que não desilude sempre que nos chega uma notícia da editora de Lyon. Falam do novo disco de Ultra Zook, uma banda francesa formada em 2011 que agora lança Auvergnication, trabalho que se enquadra na época estival e tem como pano de fundo a Auvérnia, região montanhosa rica em florestação, com estâncias termais e vulcões adormecidos. Clermond-Ferrand, lugar onde decorre um dos festivais de cinema mais importantes da Europa, é a principal cidade da região. O quinto disco (3 EPs) e segundo álbum, que contém 9 temas, abunda em talento e criatividade, tanto conceptual quanto musicalmente. François Arbon (saxofone e trombone), Flo Borojevic (percussão), Ilya Faraut (voz) são os músicos convidados deste disco que contribuíram com linhas e texturas sonoras. Imagino a diversão em torno da criação de Auvergnication. 

Ultra Zook

Não se tem como intuito detalhar cada faixa de Auvergnication. Essa tarefa cabe a quem o quiser ouvir. No entanto, alguns temas merecem ser destacados, como é o caso de "Rêve avec les Red Hots", pelo imaginário revelado por um dos integrantes da banda, que há 10 anos sonhou que conheceu [os outrora até interessantes, mas agora chatos], Red Hot Chili Peppers. Ressaltam "J'ai l'impression qu'c'est plus ça", que conta a história de um desentendimento amoroso, "L'aspi", que segue os pensamentos de uma pessoa que está a aspirar a casa e "Cet Enfant-là", que fala sobre uma separação e o fato de que nunca nascerá um filho dessa união. "Complètement Plètement", cujo texto foi escrito pelo irmão do último membro do grupo Jérémie Bardiaux, joga com palavras e ritmos. O meu preferido? "Salut!". É festivo e causa gargalhadas. Auvergnication é um bom disco para acompanhar as férias junto de amigos melómanos que tanto falam sobre como conseguiram enganar o ChatGpt sentados numa tampa de sanita, como fritam batatas fritas cobertas com aioli às 5 da manhã depois de uma maratona no youtube a ver vídeos de luta do Rambo turco. Este disco é divertido. Se conseguir roubar um sorriso de alguém que esteja a passar por uma depressão profunda, deixará certamente o trio contente. Bandas como Za!, Red Wings Mosquito Stings e Zach Hill remetem, aqui e ali, para o som dos franceses. 
 
Assinala-se o gesto bonito das editoras que se uniram para distribuírem o disco: Dur et Doux, Coolax, Araki Records, L'Etourneur, Not a Pub e Gnougn e a Ignominie para a versão K7. A capa colorida, autoria de Matt Konture, deixará o arquivo musical ainda mais interessante e, segundo um membro de Ultra Zook, já o testou no rádio do carro. Parece que a experiência correu bem, excepto nas alturas em que não reparou nas lombadas da estrada.

Os Ultra Zook têm dado concertos. E que tal visitarem Portugal?

Ultra ZookBenjamin Bardiaux: teclado e vocais; Rémi Faraut: bateria e vocais; Manu Siachoua: baixo, guitarra e vocais

Texto: Priscilla Fontoura

  Montagem: Priscilla Fontoura

 

Montagem: Priscilla Fontoura

Wagner als "gefährliches Individuum“, Steckbrief von 1853 O ruído contraria a harmonia tal como a violência se opõe à paz. Diz Jacq...

Wagner als "gefährliches Individuum“, Steckbrief von 1853

O ruído contraria a harmonia tal como a violência se opõe à paz. Diz Jacques Attali que o ruído é, em si mesmo, violência: molesta. Fazer ruído é romper a comunicação, desconectar, matar. Por outra parte, a música é o simulacro de canalização do ruído, imagem de sacrifício, sublimação, exacerbação do imaginário, ao mesmo tempo que criadora de ordem social e de integração política1.

Todo o poder ou ideologia precisa de um músico para fazer esquecer a violência geral; de fazer acreditar na harmonia do mundo pela legitimação do poder; e de fazer calar a dissidência produzindo uma música ensurdecedora e eclética. O poder utiliza a música como bode expiatório ou rito sacrificial quando nos quer esquecidos; como encenação ilusória sempre que necessite da nossa credulidade; e como repetição em série, uniformizadora, quando precise de nos emudecer.

A música sempre foi um instrumento nas mãos do poder. Carlos Magno impôs o canto gregoriano para controlar o pensamento e criar a unidade política e cultural em todo o seu império. A ópera, a música sinfónica, o jazz, o pop ou o rock reproduzem a estrutura das sociedades nas quais se manifestaram e também mudam com elas. Mas o músico também pode ser perigoso quando tem a possibilidade de subverter a normalidade e nos faz ouvir aquilo que acabará por se tornar visível. Essa era a advertência de Platão, pois “nunca se abalam os géneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade”2. E quando o poder desleixa a proteção e financiamento dos seus músicos, eclodem os sons dos diferentes poderes em conflito e até os ruídos de revolução.

Em 1830, quando tinha apenas dezassete anos, Richard Wagner ficou revoltado pela invasão russa da Polónia, e aí começou o seu in amado posicionamento revolucionário. Em 1848, ano do Manifesto comunista, Wagner frequenta o anarquista Bakunin e, pouco antes da revolução de maio de 1849, no dia 8 de abril publica um artigo radical, no Volksbläter, pedindo a destruição da ordem existente; mas a revolução foi duramente reprimida e, milagrosamente, consegue fugir ao fuzilamento exilando-se na Suíça. Wagner nunca incluiu ‘Die Revolution’ na edição dos artigos e poemas mas foi o germe do libreto da Tetralogia de O Anel dos Nibelungos.

A viúva de Wagner, Cósima, e o seu lho Siegfried, dirigiram o Festival de Bayreuth até 1930, passando a direção, nesse ano, para Winifred, viúva de Sigfried, que era muito amiga de Adolf Hitler, começando aí a manipulação da mensagem wagneriana. O gosto musical de Hitler não ia além de operetas e de insípidas musiquetas, mas o aparato de propaganda nazi soube capitalizar os convites do festival. No final da guerra, Winifred foi condenada à prisão, com pena suspensa, e afastada da direção.

O triste paradoxo é que após mais uma invasão russa, e um século da perversa manipulação nazi, ainda haja quem acredite que Wagner inspirou as atrocidades de Hitler, ou que um grupo paramilitar invoque o seu nome para semear a morte na Ucrânia. Nenhum deles percebeu alguma coisa do significado profundo das óperas wagnerianas, e como a invocação errada os leva a uma desgraça imprevista e funesta, como aconteceu a Hitler. Talvez esta reflexão de Edward Said nos ajude a entender: “Em certo sentido, todas as artes são silenciosas... a música, que depende do seu som, e é som, é a mais silenciosa, a mais inacessível ao significado mimético que, por exemplo, podemos obter de um poema, uma novela ou um filme.”3 Interiorizar esse silêncio é um ritual reconciliador com a ordem social, mas o silêncio que aqueles iluminados impõem à humanidade tem mais a ver com a paz dos cemitérios, em sentido literal. Quando a música substitui o ruído natural de fundo, transforma-se numa violenta imposição do silêncio pela música, num ruído para fazer calar a massa ou reorganizá-la ideologicamente por meio da repetição. Mas a repetição só transmite a insignificância, a incomunicação e utiliza o arcaico sistema tonal para não surpreender o público e assim conseguir que a massa consuma as musiquetas do ruído de uniformização universal. Há uma outra música, radicalmente oposta, minoritária e sem mercado, que sub- verte os códigos culturais dominantes, e que pode fazer-nos ouvir aquilo que acabará por tornar-se visível. Attali conclui que “a música é como a multidão, tanto ameaçadora como uma fonte necessária de legitimidade, um risco que todo o poder deve correr ao tentar canalizá-la”4.

O imperador romano Marco Aurélio, no livro segundo das suas Meditações, afirma: “Eu já vi a beleza do bem e o horror do mal, e percebi que a natureza de quem pratica esse mal é semelhante à minha”5. A música é uma negociação contínua das partes em conflito. A composição é um questionamento perpétuo da estabilidade, ou seja, das diferenças. Lederach dá por certo que “a criatividade vai além do que existe, rumo a algo novo e inesperado”6.

Autor do texto: Rudesindo Soutelo (Compositor e Mestre em Educação Artística)


1 Attali, J.: Ruídos. Ensaio sobre la economia política de la música. Valencia: Ruedo Ibérico, 1977, p. 53.
2 Platão: A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 169 [424 c].3
3 Said, E.: Música al limite. Barcelona: Random House Mondadori, 2011, p. 348.
4 Attali, J.: Op. cit. p. 29.
5 Aurélio, M.: Meditações. Lisboa: Cultura editora, 2019, p. 19.
6 Lederach, J.P.: The Moral Imagination in European Judaism. Volume 40, Issue 2 (2007) (berghahnjournals.com). Aces- so em: 11 abr. 2023.